"Cozinhando com Francis Bacon"? Que tal "Decorando com Theodor Adorno"?
A cultura performática tomou conta das nossas vidas.
Muito se falou da ex-BBB Rafa Kalimann que impressionou no início da semana ao comprar cerca de 10 mil reais em livros. Número interessante, plenamente alcancável por qualquer leito assíduo, se juntar seus gastos ao longo de um certo período. No entanto, o que trouxe a situação à luz foi um detalhe apenas: o fato dos livros terem o propósito decorativo.
Um fato que ilustrou bem esse propósito, foi o da apresentadora se atrapalhar ao citar um livro do filósofo empirista Francis Bacon, “A Beleza da Carne”, como um de gastronomia.
Queria deixar claro a princípio que esse texto não se trata de um ataque à influenciadora, apenas uma reflexão. Livros decorativos têm feito parte de diversos contextos: decorações de restaurantes, livrarias, estabelecimentos comerciais, e não são novidade de forma alguma. O problema, aqui, não é a decoração em si — mas o que ela representa, e a quem ela serve.
Tudo isso me trouxe à mente outro filósofo, só que de tempos posteriores. Um que tem um nome bastante irônico, considerando o tema central do texto, as performances que “adornam” a cultura atual — Theodor W. Adorno.
Adorno era um filósofo da escola de Frankfurt, de viés Marxista, e um tema central em sua obra foi a massificação da cultura. Ele era contra a indústria artística moderna, na qual livros, músicas, filmes — tudo virou objeto de consumo, em contraponto à arte por apreciação. Arte por arte. Que teria um objetivo estético, de reflexão, inspiração e expressão.
No caso da Kalimann, o que parece, é que ao comprar livros em quantidades massificantes para sua casa, sem se preocupar com o conteúdo das obras, os livros perdem o sentido. Se eu compro livros para embelezar minha casa, para me dar um ar de intelectualidade, sem nem me preocupar se o conteúdo deles é algo informativo, ou sequer de meu interesse, então o livro não perderia seu propósito?
A compra de livros fez parte de sua curadoria de imagem, mas não de um ato de reflexão. O que, tudo bem, eu suponho que nem todo livro seja informativo.
Existem livros com o propósito de entretenimento. Os livros que a influencer comprou com o propósito gastronômico misturam o entretenimento com informação.
Muito popular entre as jovens, os dark romances, ou livros baseados em fanfiction, seriam exclusivamente de entretenimento e consumo.
Adorno morreu há mais de 50 anos, mas o que provavelmente falaria, caso estivesse vivo na fase da mídia social, é que a exposição da compra dos livros, especialmente daqueles que supostamente tem conteúdo filosófico, em redes sociais transforma a filosofia em um acessório de status.
Se Adorno estivesse vivo na era das redes sociais, provavelmente diria que transformar a filosofia em conteúdo de Instagram é reduzi-la a fetiche de consumo. Um símbolo de distinção — como uma bolsa da Hermès. Só que, neste caso, a bolsa está na estante. E às vezes, é falsificada.
Até os “pseudo-intelectuais”, mentes extremamente trabalhadas e cheias de conteúdo, podem cair vítimas destas performances. Afinal, temos que “parecer” o que somos. Temos que vender esta intelectualidade. O valor é simbólico e não verdadeiro.
Pense na cidade de São Paulo. Quantos jovens homens não se dizem “anti-capitalistas”, utilizam de uma certa “estética-visual” em seus bigodes, se auto-denominam “rapazes latino americanos”, só fotografam em câmera analógica, são “cinéfilos”, leêm Slavoj Zizek... Com certeza isto trouxe alguém em mente, não?
Ou mulheres bebendo seu chá matcha, com suas comidas veganas, franjas na testa, óculos grandes, que só ouvem música de minoria tal, ou consagradas nos anos 60 — e eu tenho lugar de fala, porque eu sou essa tal mulher de franja.
Mesmo que tudo seja verdade, ainda há um quê de performance. Um ritual. Um pertencimento. Um “eu tenho, você não tem”, digno de uma propaganda dos anos 90. É de fato uma mudança da intenção social da cultura, virando um tipo de capital cultural, mas simbólico. Simbólico, se não for verdade; capital cultural de fato, se for verdade, mas agora sem ter como disassociar o papel de consumo.
A questão não é criticar quem compra livros decorativos, ou quem aprecia a estética, ou quem posta fotos bonitas com citações de {sei lá, insira mentalmente qualquer filósofo aqui}.
A questão é: o que estamos fazendo com a cultura?
Estamos nos permitindo ser transformados por ela — ou apenas a transformando em mais um item para o carrinho?
Algo me diz que a melhor estante de livros é aquela feia demais para ser vista.